21 de novembro de 2024

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O repasse dos custos do teletrabalho aos empregados é enriquecimento ilícito?

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Artigo publicado no Consultor Jurídico aponta que, em regra, não há qualquer forma de auxílio ou ressarcimento dessas despesas no setor público, diferentemente do que ocorre em empresas que adotaram  providências para auxiliar os trabalhadores colocadas no sistema de trabalho remoto por causa da pandemia

Marco Aurélio Serau Junior/ Conjur
02/02/2021

A prática trabalhista adotada desde o começo da pandemia aponta para situações as mais diversas: desde empresas que negociaram com seus empregados e, assim, levaram a cabo adequadas políticas de ressarcimento de gastos (pagando auxílios geralmente em torno de R$ 70 a R$ 100 mensais) até situações em que não há qualquer forma de auxílio ou ressarcimento desses custos com infraestrutura e equipamentos tecnológicos (como tem sido a regra no setor público) — configurando assim uma provável forma de enriquecimento ilícito por parte das empresas.

No ano de 2020 apareceu o Direito do Trabalho emergencial, consistente na edição de profusa legislação transitória, necessária e suficiente à adequação do ordenamento jurídico, sobretudo no que concerne às relações contratuais de trabalho, enquanto perduraram e foram relevantes as medidas de isolamento social e — muitas vezes — de paralisação de atividades econômicas.

Algumas das mais notáveis medidas preconizadas na legislação trabalhista emergencial foram o incentivo e a facilitação da adoção do teletrabalho, a partir da flexibilização dos procedimentos permitida pela Medida Provisória 927/2020.

A Medida Provisória 927/2020, em síntese, permitiu a adoção do teletrabalho mediante ato unilateral do empregador (na perspectiva do jus variandi, isto é, do poder diretivo do empregador), sendo que a CLT, na regra normal, exige acordo entre empregados e empregadores. De outra sorte, também se dispensou o prévio registro em contrato desse tipo de alteração contratual — exigência regular da CLT — indicando que o respectivo aditivo contratual poderia ser realizado posteriormente. Também se encurtou o prazo para início do teletrabalho de 15 dias (conforme previsão da consolidação) para 48 horas.

Todas essas alterações foram consideradas adequadas e necessárias para o momento pela maior parte da doutrina. Todavia, mesmo cessada a vigência da MP 927/2020, ainda permanece polêmico o tópico relativo ao ressarcimento dos custos com a infraestrutura e equipamentos tecnológicos necessários à realização do teletrabalho.

A regulação do teletrabalho no Brasil
O teletrabalho é previsto pela CLT desde as alterações promovidas pela Lei 12.551:

“Artigo 6º — Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego.
Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”
.

O teletrabalho já era posto em prática mesmo antes dessa alteração legislativa: no Direito do Trabalho é muito forte a atuação das fontes autônomas de criação de normas sobre a regulação do trabalho (desde que não sejam lesivas aos interesses dos trabalhadores) e o teletrabalho seria admissível mediante acordo individual ou coletivo com o empregador.

Como se verifica do artigo 6º, parágrafo único, da CLT, teletrabalho é aquele que é realizado externamente às dependências do empregador. Porém, diferentemente de tradicionais formas de trabalho externo (como no caso de motoristas profissionais ou vendedores externos), o teletrabalho é uma forma de trabalho em que predomina a realização da atividade profissional mediante a utilização de recursos da tecnologia da informação e da comunicação (TIC).

A reforma trabalhista de 2017 (Lei 13.467) trouxe regulamentação mais minuciosa sobre esse tema, inserindo na CLT os artigos 75-A a 75-E. No que diz respeito ao objeto deste artigo, transcrevo o artigo 75-D, da CLT:

“Artigo 75-D — As disposições relativas à responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho remoto, bem como ao reembolso de despesas arcadas pelo empregado, serão previstas em contrato escrito.
Parágrafo único. As utilidades mencionadas no
 caput deste artigo não integram a remuneração do empregado”.

O texto da CLT estabelece que as disposições sobre “aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho remoto”, bem como aquelas relativas a eventual reembolso dessas despesas, quando forem arcadas pelo empregado, “serão previstas em contrato escrito”. Ou seja, remete-se a normatização desse tópico do teletrabalho (os custos) para eventual negociação entre as partes na relação de emprego.

A MP 927/2020 seguiu o mesmo modelo normativo, remetendo tais questões para contrato escrito:

“Artigo 4º — Durante o estado de calamidade pública a que se refere o artigo 1º, o empregador poderá, a seu critério, alterar o regime de trabalho presencial para o teletrabalho, o trabalho remoto ou outro tipo de trabalho a distância e determinar o retorno ao regime de trabalho presencial, independentemente da existência de acordos individuais ou coletivos, dispensado o registro prévio da alteração no contrato individual de trabalho.
§2º. A alteração de que trata o
 caput será notificada ao empregado com antecedência de, no mínimo, 48 horas, por escrito ou por meio eletrônico.
§3º. As disposições relativas à responsabilidade pela aquisição, pela manutenção ou pelo fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada à prestação do teletrabalho, trabalho remoto ou trabalho a distância e ao reembolso de despesas arcadas pelo empregado serão previstas em contrato escrito, firmado previamente ou no prazo de 30 dias, contado da data da mudança do regime de trabalho.
§ 4º. Na hipótese de o empregado não possuir os equipamentos tecnológicos e a infraestrutura necessária e adequada à prestação do teletrabalho, do trabalho remoto ou do trabalho a distância:
I. o empregador poderá fornecer os equipamentos em regime de comodato e pagar por serviços de infraestrutura, que não caracterizarão verba de natureza salarial; ou
II. na impossibilidade do oferecimento do regime de comodato de que trata o inciso I, o período da jornada normal de trabalho será computado como tempo de trabalho à disposição do empregador”
.

O repasse dos custos do teletrabalho aos empregados pode caracterizar enriquecimento ilícito por parte das empresas?
É importante frisar que que a legislação trabalhista brasileira não determina o repasse aos empregados dos custos com a infraestrutura e equipamentos tecnológicos necessários à realização do teletrabalho.

A crítica que deve ser feita se direciona aos termos muito vagos com que a CLT (e também a MP 927/2020, durante seu prazo de vigência) cuida da questão, mencionando simples “previsão contratual” a respeito desses custos.

O tema é remetido, portanto, à negociação coletiva ou individual e, nesse ponto, não se pode perder de vista a assimetria que caracteriza as relações de trabalho, levando o Direito do Trabalho a adotar como vetor hermenêutico central justamente o princípio da proteção — na expectativa de propiciar algum nivelamento — jurídica — de uma relação — de cunho econômico — que é essencialmente assimétrica.

A prática trabalhista adotada desde o começo da pandemia aponta para situações as mais diversas: desde empresas que negociaram com seus empregados e, assim, levaram a cabo adequadas políticas de ressarcimento de gastos (pagando auxílios geralmente em torno de R$ 70 a R$ 100 mensais) até situações em que não há qualquer forma de auxílio ou ressarcimento desses custos com infraestrutura e equipamentos tecnológicos (como tem sido a regra no setor público) — configurando assim uma provável forma de enriquecimento ilícito por parte das empresas. Também há casos de empresas que fornecem pontos de apoio a seus empregados (na modalidade de coworking).

O Direito Comparado demonstra que diversos países (a exemplo de Portugal, México e Argentina) adotaram como regra expressa a obrigatoriedade de as empresas assumirem os custos com infraestrutura e equipamentos necessários à realização do teletrabalho.

Cremos que esse modelo parece o mais adequado, sobretudo diante da assimetria que é típica nas relações de trabalho: ao mesmo tempo em que há diversos exemplos de boas práticas trabalhistas, também há exemplos de situações de notória injustiça.

Não custa lembrar que, nos termos do artigo 2º da CLT, “empregador é aquele que assume os riscos da atividade econômica”. Assim, e a depender da situação concreta, é defensável a tese do ajuizamento de ação judicial visando o ressarcimento dos custos em torno do teletrabalho, especialmente nos termos do artigo 884, do Código Civil:

“Artigo 884 — Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários”.

Em todos os casos, e sem prejuízo da aplicação de outros dispositivos legais, cremos que devem ser comprovados os gastos dispendidos pelos empregados a fim de se obter o aludido ressarcimento.

P.S.: Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

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