Parte da vida de cerca de 14 milhões de brasileiros, a falta de legislação do trabalho remoto para regulamentar os direitos dos trabalhadores tem preocupado especialistas
CORREIO BRAZILIENSE
EU ESTUDANTE – TALITA DE SOUZA
07/02/2021
Após 10 meses com o home office como prática cotidiana para milhares de brasileiros, em resposta à pandemia da covid-19 iniciada em março de 2020, especialistas e parlamentares pedem a regulamentação do estilo de trabalho, com regras claras e ponderadas, em que empregadores e empregados não sejam prejudicados.
Atualmente, o teletrabalho está previsto e regulado apenas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), no artigo 75, incluído na legislação por meio da Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/17).
O texto da CLT define o teletrabalho como a “prestação de serviços fora das dependências do empregador com a utilização de tecnologias” e prevê as negociações do tipo de trabalho em um acordo individual. Para o advogado trabalhista Carlos Henrique Ferreira, da Ferreira Batista Advocacia, a legislação não é suficiente.
“O que está previsto na CLT é muito vago e dá margem para várias reclamações trabalhistas”, afirma. “Isso levará o Judiciário a começar a ter interpretações diferentes nos Tribunais Regionais do Trabalho e virará uma bola de neve até chegar ao Tribunal Superior do Trabalho (TST)”, diz.
Um cenário previsto que já começa a ser realidade. De acordo com dados do TST, entre março e setembro de 2020, foram registrados 263% mais casos nas Varas do Trabalho com os assuntos “teletrabalho”, “trabalho a distância” e “trabalho em domicílio”.
Perda de direitos
De acordo com o advogado Carlos Henrique Ferreira, a legislação permite duas grandes infrações contra o trabalhador: o não pagamento de hora extra e a falta de definição da responsabilidade de aquisição de equipamentos para o teletrabalho.
“O que temos na CLT protege muito o empregador e deixa o empregado em uma situação que não é muito confortável”, analisa. “É comum exceder a jornada de trabalho, já que, agora, empregadores acreditam que empregados estão à disposição a qualquer hora. Mesmo atendendo a essas demandas, os funcionários não ganham hora extra”, conta.
Mobilização coletiva
A regulamentação do home office também deve ser pauta de sindicatos locais. É no que acredita a advogada trabalhista do escritório Benhame Sociedade de Advogados Maria Lúcia Benhame.
Para ela, os acordos são mais efetivos se forem personalizados, ou seja, discutidos com cada empresa, e os sindicatos seriam atores importantes nesse debate.
“Empresas e empregados devem analisar e ver se o modelo de trabalho vale a pena ou não, e, se sim, fixar regras da maneira mais clara possível. Há muitas perguntas a serem respondidas, questões que ainda não estão sendo vistas”, reflete a advogada.
“Por exemplo, se a empresa está em São Paulo e o trabalhador em Salvador, qual é a regra trabalhista que o protege? A que foi estabelecida pelo sindicato paulista ou baiano? Qual calendário vale?”, questiona. “É aí que eu entendo que os sindicatos estão perdendo uma grande oportunidade de entrarem na pauta”, diz Maria Lúcia.
Como fica após a vacinação?
» Diminuição de gastos fixos para empresas, flexibilidade para o trabalhador e possibilidade de atuar de qualquer lugar estão entre as vantagens que o home office forçado após a pandemia explicitou. E por que acabar com esses aspectos positivos após a imunização contra a covid-19?
» Especialistas acreditam que, mais do que nunca, o trabalho remoto será uma realidade, mesmo após o fim do isolamento social. E a cultura de teletrabalho se tornou mais aceita. “O home office funciona e, quando conseguimos dosar e equilibrar esse modelo, melhoramos a qualidade de vida das pessoas. Quando você melhora a qualidade de vida, você melhora o profissional também”, afirma Anselmo Bonservizzi, sócio da Deloitte, empresa internacional
de serviços.
» Para manter o equilíbrio depois que a vacinação em massa se tornar realidade, gestores e funcionários de empresas apostam no modelo híbrido para garantir a interação social entre colaboradores em determinados momentos. No caderno Trabalho & Formação Profissional do próximo domingo (14/2), você vai conferir como as empresas estão se preparando para uma retomada segura e voluntária, sem deixar o home office e o lado humano para trás.
Glossário
Conheça os termos mais comuns relacionados à atuação fora das dependências do empregador
» Teletrabalho: de acordo com a CLT, é a prestação de serviços fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação. É feito fora do estabelecimento do empregador. Pode ser na casa do profissional ou em qualquer outro local que não seja nas dependências físicas da empresa.
» Home office: é o mesmo que teletrabalho e trabalho remoto, uma política de trabalho vista como benefício para o funcionário ao possibilitar dias de serviço alternados entre trabalho presencial e em domicílio. Não há uma legislação específica. Portanto, não exige uma formalização no contrato de trabalho e não precisa, como o teletrabalho, utilizar tecnologias de informação e conexão. Contudo, para o home office, pode haver o controle da jornada de trabalho e hora extra, bem como o empregador deve orientar o colaborador sobre as normas de saúde e segurança para a efetivar as atividades.
» Trabalho remoto: diferentemente do teletrabalho, pode ser feito em polos de trabalho alternativos fornecidos pelo empregador, como salas perto da residência do funcionário, por exemplo, ou em hotéis em viagem de trabalho
3 Regime híbrido: é o revezamento de equipes, em que um time trabalha por um período em home office e outro, presencialmente. É caracterizado pelo fato de as empresas darem autonomia e flexibilidade para os colaboradores. Eles alternam a jornada de trabalho entre dias no escritório e dias em home office.
» Anywhere office: mais do que um regime, o anywhere office (trabalhe de onde quiser) é uma cultura. O modelo permite e incentiva mobilidade, flexibilidade e liberdade para os colaboradores trabalharem da praia, da montanha, da casa da mãe, da cafeteria ou do coworking. Esse formato tem vantagens, dentre elas, contratar pessoas qualificadas de qualquer localidade.
Balança desigual
Para o senador federal e coordenador da Frente Parlamentar Mista do Serviço Público, Paulo Paim (PT/RS), a legislação atual é uma balança desigual. “Quando as empresas aderiram ao trabalho home office, deixaram de ter gastos com luz, água e até aluguel”, comenta.
“Tudo resultou em um ganho para o empreendedor, e eu não tenho nada contra isso. O que eu tenho contra é que o empregado não tem direito a nada”, pontua. “É uma espécie de escravidão moderna, porque o camarada não tem direito a nada, a não ser trabalhar e receber as horas trabalhadas”, critica.
Paulo Paim afirma que legislações que preveem apenas acordos individuais possibilitam mais poder de decisão a quem define o destino do colaborador. “O problema é que os acordos dão toda força para quem pode empregar e desempregar”, conta.
“Ou seja, se o empregado propor algo que o empregador não queira, não tem o que fazer, a não ser trabalhar sem direitos ou ficar sem emprego”, observa. A afirmação é confirmada por dados obtidos pelo Instituto DataSenado em outubro de 2020.
Mesmo com a Medida Provisória nº 927/20, que permitia ao empregador custear materiais para o empregado, em vigor na época da implantação do home office, a maioria dos trabalhadores saiu no prejuízo.
Dos 14 milhões de brasileiros em teletrabalho por estimativa do instituto, 68% não receberam auxílio da empresa em que trabalham para se adaptarem à nova rotina. Além disso, 19% tiveram redução de salário e 24% perderam algum benefício que era pago no estilo presencial.
Sem brechas
Agora, a preocupação de quem luta pelos direitos dos trabalhadores é garantir uma base sólida para quem permanecer no estilo de trabalho remoto mesmo após a vacina. Esse é o objetivo do senador federal Fabiano Contarato (Rede/ES), autor do Projeto de Lei (PL) nº 3.512/20, que obriga o empregador a fornecer e manter a infraestrutura necessária para o teletrabalho.
“A legislação trabalhista deve se adequar à realidade e considerar os seus problemas. A pandemia mudou a forma de trabalho de milhões de brasileiros, uma mudança que, provavelmente, não será revertida, mesmo com a superação da covid-19”, percebe. “Por isso, uma reforma da CLT é necessária para garantir a devida proteção aos trabalhadores que aderiram, por opção ou obrigação, ao teletrabalho”, propõe.
Garantias
Outro ponto que deve estar em uma futura legislação aprovada pelo Congresso Nacional é o de direitos básicos. O senador Paulo Paim alerta que um novo modo de trabalho deve ser respaldado com todos os direitos trabalhistas.
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